Fragmentos de Mim

Fragmentos de Mim

Por: Jossandra Costa Barbosa

Crônica vencedora do 1º lugar do I Concurso Literário  do SINDESERM/THE -Piauí -2006

“Ai que saudade da aurora da minha vida, da infância querida que não volta mais...”
E
sta é a melhor forma de iniciar este breve relato das minhas lembranças. Começar pela saudade. Saudade dos tempos que não voltam mais. Da cidade menina, Teresina de pés descalços, de terra batida, ar fresco e rural.
“Vou andando por essas ruas, sentado nesta praça.” Terra feliz e boa onde nasci chorando, onde vi o grande amor em mim desabrochando, amor do bem, da luz, do mistério profundo. Teresina gentil de ruas alinhadas ““...
Quantas lembranças, quantas recordações...
II

Teresina- final do século XIX

T

eresina ainda era menina quando nasci em 1907. Numa noite chuvosa, casinha pequena, naquela época chovia aqui, as casas perto do rio sofriam com as enchentes, muita gente rica se mudou dali, principalmente depois da enchente   de 1926. Muitos pobres ficaram sem nada e os abastados foram lá pras bandas da N.S. das Dores, lá onde hoje é a Praça Saraiva. Minha mãe lavadeira, doceira, mulher de fibra, ajudava meu pai, acendedor de lampiões. Tinha tanto medo de aparecer a  Num se Pode. E se a encontrássemos? Eu saia correndo, meu pai não, esse era corajoso.

Lenda Piauiense-Num-se-pode


III
Navegação no Rio Parnaiba- incio do sec XX

C
resci ali, vendo as balsas rio acima, trazendo frutas, verduras e todo tipo de alimento para abastecer a cidade que vinha principalmente de Amarante, era sempre uma animação. Tinha muita gente ali. Gente de todo tipo, mulher, homem, menino, gente que comprava gente que vendia. Tinha muitas casas de comércio, as maiores da cidade,  ate as cheias chegarem. Até uma fábrica fizeram ali, me lembro dela a de fiação. Mamãe queria trabalhar lá, mas era pesado. Quem ia cuidar de nós pequenos? Papai não deixou não, homem naquela época tinha palavra.
Gostava de ver os barcos chegar e sair. Ficava ali parado olhando o Urussuhy. Como era bonito! Depois desapareceu, ai veio outros, os da D. Naninha, que morava na Paissandu. Eram uns quatros, grandes e bonitos, dizem que ela vendeu tudo pro Jacob por causa das dívidas do filho. Mas o rio era grande e fundo. Não é como hoje não.Era importante, imponente e furioso. Mandava aqui. Muita gente morria afogada lá. Tinha que ter cuidado, mamãe sempre dizia: Menino cuidado com o cabeça-de-cuia, ele vai te pegar. Depois veio o avião, o Condor, me lembro dele. Era bonito. Hoje agoniza, “é o Parnaíba, assim carpindo as suas mágoas, rio da minha terra, ungido de tristeza, refletindo o meu ser à flor das águas”  assim escreveu o conterrâneo Da Costa e Silva.
IV
I
sso me faz lembrar da primeira vez que vi um avião, só eu não todo mundo daqui. Já era rapaz, quando o presidente Getúlio Vargas veio aqui, trouxe três aeronaves, teve espetáculo no ar e todo mundo saiu pra ver. Mas teve gente que ficou com medo. Foi um dia de festança. Foi ele que inaugurou aquele colégio lá da circular, a Miguel Rosa, O Domingo Jorge Velho.


V
Colégio das irmãs- Sagrado Coração de Jesus- anos 20


M
as voltando a minha infância. Escola só pra quem tinha dinheiro pra pagr. No colégio dos padres ou das freiras, no Liceu, na Escola Normal, tinha também a Escola de Aprendizes, lá ensinavam muitas coisas pra quem não podiam pagar o secundário e ir pra Recife ser doutor. Meu pai sabia poucas letras, minha mãe nada, nada. Meu padrim, homem comerciante, tinha um bazar. Trabalhei com ele muito tempo. Tinha de tudo do querosene ao tecido ajudou nos meus estudos. Gostava de mim, sempre fui escorçado aproveitei as oportunidades que tive.
Aprendi a ler com D. Maricota, mulher gorda e solteirona, que dava aulas particulares na rua Coelho de Rodrigues, onde morou o Abdias Neves. No sábado era a sabatina, onde tínhamos que responder a tabuada, se errasse a palmatória comia o couro da mão. Lembro do meu pai me perguntando, a luz da lamparina, para no outro dia não apanhar dos outros.

VI
Ao fundo igreja São Benedito

D
omingo era dia de festa. Todo mundo ia pra missa, lá na N.S. do Amparo. Lá era animado, tinha muitas casas de comércio ao redor, a Farmácia dos Pobres, que era uma das mais antigas, durou foi muito tempo, a Casa Carvalho, a Brasileira, a Paulista eram muitas, principalmente a dos carcamanos, tinha o Peti Bar, o Café Avenida, o mercado, a Intendência, a casa do governador, a biblioteca municipal e muitas casas de fazendeiros, políticos, de gente que tinha dinheiro. Casas bonitas feitas de carnaúba, grandes quintais com pomares e poços. Gostava mesmo era do tempo dos festejos, tinha quermesse, jogo de lata, pescaria, não via hora de acabar a missa. Eita coisa que demorava! Mas quando terminava a garotada era a primeira lá fora, minha mãe fazia bolo e doce pra vender, eu sempre ganhava um pedaço e ia brincar com os meninos.
VII

1º Bonde

F
ui crescendo e a cidade também. Lembro-me do bonde. Andei nele. Tinha dois vagões. O do rico e o do pobre, porque a gente rica não queria se misturar com os outros. Pra andar no primeiro tinha que ter terno, camisa, gravata e pagar duzentos contos de réis. Não era pra mim. Trabalhei muito com meu padrim, ajudando ele juntei cem réis só pra andar no segundo vagão do bonde no domingo. Lembro-me bem. Tava cheio tinha uma gorda levando umas galinhas, um homem de bigode, tava também Manoelzinho e o pai dele, o Zé do tomate e outras pessoas que não me lembro agora. A gente pegava ele na Rio Branco e ia até o Poti Velho e voltava. Depois acabou a gente nunca mais viu um bonde, depois chegou u ônibus que não andou muito tempo. O governo não dava incentivo e ninguém queria investir.
VIII

Q
uando era rapaz, até casar com a Lourdinha todo mundo gostava de passear na Praça  Pedro II, já tinha luz elétrica, que só foi instalada em 1914, mas nem todo mundo tinha não, era cara e só era das dezoito as vinte horas, depois era tudo escuridão. Mas aos poucos foi melhorando. Tinha tempo que era pior tinha apagão, só lampião acendido.
IX
M
eu pai perdeu o emprego, foi tempo difícil, até quando ele morreu de gripe espanhola em 20, muita gente pobre e rica morreu.
Um homem, outro pobre, grave moléstia prostou. Qual deles morreu? O rico que mais remédio tomou”.
 Bocage, ah Bocage! Não estava certo. Meu pai foi enterrado lá no matadouro, nós não tínhamos dinheiro pra enterra ele no São José. Minha mãe deu azeite de mamona e matruz pra ele, mas não teve jeito. Rico tinha médico particular, para os pobres, só a Santa Casa de Misericórdia, que não cabia mais ninguém. Perto da minha casa morreu muita gente. Sofri muito, já era rapaz, mas senti muita falta dele. Meu irmão Toinho também morreu, tinha sete anos. Mamãe sofreu muito, mas ainda tinha quatro filhos pra criar, lavava, fazia bolos, doces e vendia nas portas. Depois veio a varíola em 26 e matou minha mãe muita gente em Teresina. Virei o chefe da família.
X

Bar Carnaúba-praça Pedro II

Conheci Lourdinha na Praça Pedro II, eu em cima e ela embaixo. Mundos diferentes. Distâncias Intermináveis. Desde a primeira vez a vi sabia que ela era a mulher da minha vida. Era assim naquele tempo: olhava, amava, casava e vivia pra sempre. Mas era um amor impossível, ela ficava lá em baixo cheia de graça. Com seus vestidos de seda, laço de cetim na cabeça. Sorria pra mim, tinha certeza que era pra mim. A banda tocava, a banda da policia e todo domingo eu tava lá só pra vê – la sorrir. A P. 2 com seus jardins floridos, carnaubais decorados, era um local de encontro dos jovens senhores, senhoritas, senhoras, era o melhor lugar de passeio da cidade nos anos trinta, principalmente depois que o Rex, o clube dos diários, os cinemas Royall, o Olímpia e o Bar Carvalho. Lembro-me também do Carnaúba, mas esse foi na década de 50, era bonito, todo mundo ia pra lá. Tinha terminado no Liceu. Dava aulas, já tinhas uns trinta anos. Tive que criar meus irmãos. Tinha que casar, mas Lourdinha era um amor impossível.
XI

Teatro 4 de Setembro e Cine Rex - anos 40






F
oi no 4 de Setembro a primeira vez que falei com Lourdinha. Lá tinha filmes. As mães não gostavam que as moças fossem assistir, os padres diziam que era coisa do demônio. Mas pra mim foi um paraíso. Sentei pela primeira vez perto da Lourdinha que tido ido com sua prima e tia ver o primeiro filme falado que passou Teresina o “Doce como Mel”. Cumprimentei-a e perguntei se podia sentar ao seu lado e ela permitiu. Daí fomos nos encontrando cada vez mais, sempre sobre os olhares de D. Nizélia, tia de Lourdinha, que não aprovava nossa amizade. Adorava poesia, mandei muitas cartas de amor a ela.
XII
Rua Senador Teodoro Pacheco anos 40-50

F
ui pra Recife, com a ajuda de meu Padrim, estudar na Faculdade de Direito. Foram anos que apenas falei com Lourdinha por cartas, mas ela me esperou. Casamos em 1940. Compramos uma casa na Rua Bella, hoje Senador Teodoro Pacheco, fui professor, doutor e político. Vivemos trinta anos juntos, quando Lourdinha morreu. “No mundo nom me sei parelha, mentre me for como me vai, cá já moro por vós e ai, minha senhora branca e vermelha”. A amo até hoje.
XIII

Teresina-anos 50-60

Q
uando voltei de Recife minha cidade tinha crescido. As ruas de terra batida tinham ganhado calçamento de pedras nas ruas principais. A ponte João Luís Ferreira tinha sido inaugurada com grande festa. Muitas casas já tinham telefone e rádio. Haviam começado a fazer a Frei Serafim, o hospital Getúlio Vargas, o convento São Benedito, e os prédios dos correios. A cidade crescia. Os subúrbios também. A Paissandu, antes residências de grandes comerciantes e carcamanos, agora era refúgio de prostibulo. O Barrocão, o Palha de Arroz, O Pavatuba, a Estrada Nova e a Piçarra também tinham crescido. Tiveram muitos incêndios nas casas de palhas, diziam que eram mandados, mas ninguém nunca provou, muita gente perdeu tudo e morreu. Gente pobre que vinha de longe, gente sem recurso que faziam pequenas casas de palhas e terra batida.
XIV
Teresina anos 40-50
M
uita coisa mudou. Tenho saudade de outrora. Desculpem-me, não é um recomeço da história e sim seu fim. Hoje, velho, trépido e cansado, sentado na P.2. Relembro de Lourdinha ali sorrindo, mexendo seu vestido rodado de um lado para outro. Olho o 4 de Setembro , o Rex, quase  igual, mas sem o mesmo brilho, sem o mesmo esplendor e encanto. A cidade cresceu, eu envelheci me sinto como o velho Restelo de Camões:
“Que promessa de reino e de minas ouro, que farás tão facilmente? Que fama lhe prometerá? Que histórias? Que triunfo? Que Palmas? Que vitórias?”
Tantos desejos, tantas lembranças, tantos anseios de poder, fortuna, amores ficaram com o tempo. Na velhice descobrimos que o amor verdadeiro é o único tesouro que realmente conquistamos. AS lembranças são o que levamos para o túmulo e o progresso é o que destrói nossas raízes. Ai que saudade da minha Teresina menina. Sobrou-me apenas a poesia:
“Valeu a pena? Tudo vale a pena se alma não é pequena”.
(Fernando Pessoa)

Jossandra C. Barbosa
Licenciada em História - UFPI – PI
Graduanda em Psicopedagogia Clinica, Hospitalar, Institucional e Empresarial – FAP/PI
Professora de História da rede municipal de Teresina/Pi.